Filha de Oswald de Andrade doa acervo de obras do pai para as bibliotecas públicas do estado de São Paulo
08 DE fevereiro DE 2022“Um romance, um poema ou um conto só adquirem vida quando são lidos”. A frase de Marilia de Andrade, filha mais nova de Oswald de Andrade, resume bem sua intenção ao doar vários livros do seu acervo pessoal para as bibliotecas públicas do estado de São Paulo. Entre os mais de 230 exemplares enviados, 22 títulos são de autoria do próprio escritor e cerca de 30 abordam assuntos diversos, especialmente teoria e crítica literária.
Durante as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 22, as obras doadas ficarão em destaque na Biblioteca de São Paulo e na Biblioteca Parque Villa-Lobos e já estão disponíveis aos associados para empréstimo. “Ao viabilizar o acesso aos livros para públicos diversos tenho a sensação de missão cumprida, especialmente porque ainda guardo viva a lembrança do meu pai chorando porque seus livros jamais seriam lidos”, revela Marilia.
Para a gerente de acervo da SP Leituras, Hosana de Moraes Santos, é um privilégio para nossas bibliotecas contribuírem para a difusão das obras do autor. “Oswald de Andrade é uma figura essencial para a compreensão e construção da identidade brasileira, portanto altamente relevante até os dias de hoje para as discussões e debates sobre o nosso país, tanto do ponto de vista artístico quanto social.”
Assim como vários escritores da época modernista, Oswald de Andrade não teve a satisfação de ver seus livros publicados por uma editora. As impressões de suas obras em vida foram feitas com recursos próprios e distribuídas gratuitamente. “Existe um estereótipo sobre a Semana de Arte Moderna que precisa ser quebrado”, alerta Marilia. O primeiro deles é que o modernismo não é exclusivo de São Paulo e só aconteceu na cidade porque mecenas, como Paulo Prado, patrocinaram o evento. “Segundo, que o movimento era completamente embrionário. As pessoas imaginam algo concretizado e nada disso é verdade. Tudo foi construído ao longo de 40 anos”, diz. Como exemplo, cita o primeiro livro de seu pai, Serafim Ponte Grande, publicado em 1924, ou seja, dois anos depois da Semana de Arte Moderna.
Histórias de família
Atualmente, Marilia é curadora das obras do pai. O livro Diário Confessional, lançado recentemente pela Companhia das Letras, é fruto da sua dedicação em revelar a trajetória de Oswald de Andrade. “Eu guardei esses diários por anos. Eram 16 cadernos escritos à mão e a lápis. Quando a editora concordou em publicar, chamei o jornalista Manuel da Costa Pinto para organizar os textos e ficou um trabalho maravilhoso”, comenta. A obra revela um homem amargurado, deprimido, marginalizado e em extrema pobreza. “É um documento histórico, que relata as angústias dele como escritor, a necessidade de escrever e de estudar. Ali podemos entender sua agressividade, suas críticas duras aos outros colegas, muitas vezes injustas. É possível vê-lo morrendo ao longo dos textos.”
Foram nas páginas desse diário que Marilia finalmente esclareceu uma dúvida pessoal que carregava há anos. Carmem Brandão, sua primeira professora de balé, foi uma das grandes paixões de Oswald no passado. Batizada como Landa Kobashi, a bailarina trocou de nome e começou uma nova vida. Marilia descobriu essa história muitos anos depois, quando foi pesquisar os mestres que contribuíram com sua carreira na dança. Ficava pensando se o pai realmente sabia da verdadeira identidade da professora ou foi apenas uma coincidência do destino. O diário revelou o mistério. “Em umas das páginas tem algo assim: ‘hoje eu levei Antonieta Marilia para sua primeira aula de dança. Ah, se ela soubesse quem é Carmem Brandão.”
Além de coreógrafa e bailarina, Marilia de Andrade é psicóloga e tornou-se uma das principais pesquisadoras de cultura e gênero do país, publicando vários artigos científicos sobre o tema. Também dirigiu três filmes premiados sobre os estereótipos nos papéis sexuais: “É Menino ou Menina?”, “Balzaquianas” e “Terceira Idade”. Ao longo da vida conciliou as duas carreiras. “Tenho orgulho em dizer que dancei até os 60 anos”, conta. Marilia também foi responsável pela criação do curso de graduação em Dança, da Unicamp. Grande parte de sua trajetória como filha de Oswald de Andrade, bailarina e psicóloga social pode ser vista em seu site pessoal.